sexta-feira, 4 de maio de 2012

Movimento Adovocacy da Recuperação no Brasil




Entrevista com Vania Medeiros (17/02/2012)

Vania Medeiros concedeu uma entrevista para o boletim da Abead sobre a articulação do movimento Adovocacy da Recuperação no Brasil. Confira na íntegra!

Qual é o verdadeiro significado do termo Advocacy da Recuperação? Como organizar uma rede dessas no Brasil?
 
Advocacy representa um tipo de protagonismo civil para a transformação e o desenvolvimento comunitário, bastante comum em países de língua inglesa. Este movimento social defende os Direitos Humanos de grupos vulneráveis, a exemplo de indivíduos que carecem de atenção à saúde e proteção social básica e especializada. Nessa área da saúde, advocay surge no contexto do desenvolvimento do movimento de consumidores nos Estados Unidos na década de 80. 
 
Na questão do Álcool e outras Drogas (AOD), ainda nos Estados Unidos, Advocacy da Recuperação tem suas raízes no início do século XVIII, no contexto dos movimentos de mútua ajuda, e cresce até a segunda metade do século XX. Neste processo evolutivo, o movimento assumiu várias facetas, desde a luta pelo reconhecimento do alcoolismo como doença, educação preventiva e o enfrentamento da indústria do álcool. Entre erros e acertos este movimento ressurge no final dos anos 90, quando se inicia uma forte mobilização contra o estigma e a criminalização de usuários e pessoas em recuperação do uso de drogas. Advocacy da Recuperação consolidou-se nos anos 2000 com a intenção de dar um rosto e uma voz à recuperação da dependência química, com o trabalho da ONG Faces and Voices of Recovery.
 
Pode-se dizer que é uma forma de associação voluntária daqueles prejudicados pelos problemas de AOD (pessoas em recuperação, familiares e amigos) que se juntam para apoio mútuo e para reforçar as ações relacionadas aos problemas. Entendemos que no Brasil existe uma comunidade em recuperação oriunda dos mais diversos modelos de intervenção da dependência química, que exercem a sua cidadania, ou seja, trabalham, tem família; enfim, são cidadãos produtivos e precisam ganhar visibilidade. É esta a comunidade que pode sair do silêncio coletivo e construir uma voz uníssona para gritar à sociedade (políticos, gestores, profissionais) que a dependência química tem solução e que há muito que se fazer para remover as barreiras da recuperação para aqueles que ainda sofrem com os problemas relacionados ao álcool e outras drogas. Também, é preciso pensar em uma pauta que melhore a qualidade de vida daqueles que estão em recuperação.
 
O tema do curso que será ministrado no bairro do Bom Retiro é "Como organizar a comunidade em recuperação para o Advocacy da Recuperação?". Em sua opinião, qual a importância de discutirmos esse assunto em um grande pólo econômico e demográfico como a cidade de São Paulo?
 
Sim. A proposta é que o Brasil conheça este movimento e que trate de maneira pragmática os processos de articulação desta comunidade. Há muitas questões relacionadas a esta mobilização envolvendo a superação de diferenças associadas aos princípios e crenças dos mais diversos modelos de tratamento e intervenções na área da dependência química. Por outro lado, uma barreira para uma ação mais eficaz na intervenção da dependência química está relacionada às concepções ideológicas, religiosas, técnicas, epistemológicas e os interesses corporativos dos atores (profissionais, políticos, gestores públicos e empreendedores do mercado do tratamento). O movimento de advocacy da recuperação vem dando exemplo ao mundo de como lidar com esta diversidade, sem que isto represente um impedimento para a construção de uma  identidade coletiva entre pessoas voluntárias que estão superando os problemas com AOD, independente da  corrente em que ela tenha iniciado o processo de intervenção. Esta comunidade precisa estar fora de questões relativas aos interesses do mercado do tratamento ou “politicagens”, que geram mais controvérsia do que soluções. O importante é incluir nos processos e nas decisões sobre políticas públicas aqueles mais interessados na questão relacionada à melhoria da variedade das intervenções; disponibilidade e qualidade dos serviços de apoio à recuperação; e a aprovação de leis e políticas sociais que reduzam os problemas de AOD e promovam o apoio para a recuperação daqueles que ainda sofrem com problemas relacionados a AOD.  Na Paraíba nós estamos conduzindo os trabalhos de um Centro Regional de Referência para a Formação de Profissionais da Rede de Atenção ao uso de Drogas (CRR) e temos dado prioridade a uma metodologia que inclua a importância do trabalho em rede.

Nós descobrimos Advocacy da Recuperação em nossos estudos e logo compreendemos a relevância deste movimento para o Brasil, neste momento em que há uma demanda latente de articulação sobre Políticas Públicas em Drogas. Fizemos contato com lideranças do movimento nos Estados Unidos e sondamos a possibilidade deste movimento ser deflagrado também no nosso País. A princípio, pensamos em trazer este curso para a Paraíba, mas logo admitimos que São Paulo, sendo um centro nacional de referência nesta área, tem uma comunidade em recuperação muito mais significativa, oriunda dos diversos ambientes e modelos de intervenção; ressaltando ainda a qualidade dos serviços e dos profissionais desta Região. Discutimos a proposta com a psicóloga Raquel Barros, da Ong. Lua Nova, uma liderança na área do empreendedorismo social e ela nos ofereceu apoio. O curso terá um caráter de “lançamento do movimento” no Brasil, e fará parte do programa do evento intitulado “Respostas Comunitárias: Encontro de Saberes e Fazeres”, promovido pela Lua Nova e pelo Instituto Empodera (Centro de Formação em Tratamento Comunitário no Brasil). Mais informações sobre o evento estão no  endereço www.wix.com/luanova2011/respostascomunitarias.
 
O palestrante Phillip Valentine é diretor executivo da Comunidade de Recuperação de Dependentes Químicos de Connecticut (CCAR), desde 1998. Como avalia as diferenças entre a dependência nos EUA, e aqui no Brasil? Os problemas são os mesmos?
 
O problema da dependência química é inerente às sociedades onde existe o hábito do uso de substâncias psicotrópicas, mas quero destacar diferenças entre o Brasil e Estados Unidos, relativas ao processo de intervenção. Nos Estados Unidos há uma rede consolidada de atenção aos usuários de AOD, já definida por alguns como indústria da recuperação, e também uma comunidade em recuperação que tem visibilidade e que se pronuncia diante das questões relacionadas aos serviços desta rede e outras demandas inerentes aos processos da recuperação. No Brasil, a Rede está ainda se estruturando, com muitos conflitos políticos, ideológicos e técnicos e a comunidade em recuperação está escondida, é um segmento anônimo, que teme o preconceito da sociedade que ainda cultua a visão moral e defende a repressão aos usuários de drogas. Quando uma pessoa em recuperação aparece na mídia não mostra o rosto, não se identifica.

Isto dificulta a percepção do que esta comunidade precisa para se consolidar na cultura da recuperação e para se constituir como uma rede social de apoio às pessoas que ainda sofrem. Isto tem a ver com a falta de compreensão entre o que seja o tratamento e a recuperação. Quando se estuda a evolução destes dois conceitos descobre-se que tanto no Brasil, como nos Estados Unidos, o conceito da recuperação antecede o de tratamento. Na origem das intervenções dava-se mais atenção à recuperação do dependente químico do que ao modelo de tratamento adotado. Nos dois países, quando surge a idéia do tratamento vinculado ao modelo de doença, amplia-se bastante o status do profissional e do modelo e se relega o processo de recuperação do dependente químico a um plano secundário. Mas, atualmente, nos Estados Unidos o movimento de Advocacy da Recuperação tenta resgatar a perspectiva original trabalhando a ideia de que as instituições de tratamento precisam se colocar novamente a serviço do processo de recuperação; o tratamento deve ser compreendido apenas como o princípio do processo da recuperação. A sustentabilidade da recuperação depende do potencial de organização e mobilização da comunidade em recuperação, para lutar pela sua cidadania e resgate de seu papel social. O que queremos é provocar a reflexão sobre a importância deste movimento também para o Brasil.
 
Valentine está em recuperação do alcoolismo e do uso de outras drogas desde 28 de dezembro de 1987. Acredita que essa experiência de vida do palestrante agrega ainda mais valor ao curso?
 
Sem dúvida. Quem articula e promove movimento de Advocacy da Recuperação são as pessoas em recuperação. Segundo o próprio Phillip Valentine, estar aberto para falar de sua própria recuperação significa dar sentido a sua existência e ajudar as pessoas que ainda sofrem com problemas relacionados à AOD. Durante o curso, ele discutirá a importância de se vencer a barreira do silêncio coletivo (soltar a voz) sobre a recuperação. Mostrará como foi a sua experiência de superação de conflitos acerca do anonimato e como conseguiu estabelecer relações solidárias com as pessoas que congregam este movimento para que a “voz” da comunidade em recuperação fosse ouvida por aqueles que precisam de apoio e confiança de que há uma saída para o problema. Phillip vai orientar estratégias de como combater o estigma e o preconceito e como a pessoa em recuperação pode cuidar dela mesma. Há muitas pessoas exercendo a sua cidadania, que são contribuintes, que querem falar de suas necessidades como ser humano e como agente de mudanças culturais e sociais. O “Phill”, como nós o chamamos, é um desses agentes e vem apoiar o lançamento deste movimento no Brasil.
 
Como enxerga a importância da mobilização de comunidades de dependentes químicos em recuperação? Movimentos de ativismo social nessa área podem colaborar com a redução ou erradicação do preconceito?

Um dos objetivos deste movimento é a criação de espaços físicos e psicológicos onde possa acontecer a recuperação da vida social e comunitária. Outra ação relevante deste movimento é estimular a comunidade acadêmica a pesquisar sobre os processos de recuperação, o comportamento das pessoas em recuperação, para que todo o investimento das pesquisas não seja focado apenas no problema da droga, mas nas possibilidades da recuperação. No Brasil, conhecemos muito sobre drogas e seus efeitos, comportamentos que levam ao uso de drogas, intervenções, das mais complexas às mais rápidas, sobre a violência associada ao uso de drogas; precisa-se começar a compreender melhor o processo de recuperação. Trata-se de estimular estudos e o desenvolvimento metodológico de intervenção na cultura e no ambiente social onde as pessoas em recuperação convivem, para que as barreiras da discriminação sejam removidas e sejam geradas oportunidades para que as pessoas em recuperação se tornem cada vez mais produtivas em suas comunidades. O movimento pretende ter uma agenda cultural com a promoção de eventos sem uso de AOD, construir redes de apoio para a formação profissional e emprego, atendimento telefônico, consultoria na área de superação de dificuldades econômicas e outras ações importantes para atender a comunidade em recuperação.
 
Quais as expectativas em relação ao curso?
 
O curso além de formar sobre o tema é um chamamento para a articulação da comunidade em recuperação no Brasil. Será um evento histórico de sensibilização e lançamento deste movimento em nosso país. A partir deste curso queremos iniciar o movimento para dar uma voz e um rosto à recuperação; contribuindo, desta forma, para o avanço das políticas públicas na área de drogas no Brasil.
 
fonte: http://www.abead.com.br/entrevistas/exibEntrevista/?cod=110